“A casa” ainda existia, embora mais parecesse com aquela do poema homônimo de Vinícius de Moraes, “não tinha teto, não tinha (quase) nada”! Mas havia ali toda a minha presença. A pia do banheiro que eu não alcançava, o fogão a lenha pra “quentá fogo”, a escadinha da cozinha onde eu lasquei o queixo ensinando minha irmã a engatinhar...ainda guardo uma cicatriz! Enfim, era a mesma casa, a minha segunda morada!
Afastada 6 km da cidade, fomos morar ali para ficar próximos ao local de trabalho do meu pai, que era funcionário público federal, atuava como professor de música e instrutor recreativo da extinta FUNABEM, Fundação Nacional do Bem Estar do Menor. A instituição recebia menores carentes e infratores de várias partes do país, principalmente do Rio. Apesar dos programas de recuperação muito eficientes e interativos, vez ou outra um “aluno” burlava a segurança e escapava pela mata adentro, às vezes na tentativa de voltar pra casa, outras para cometer algum delito nas redondezas. E foi assim que meu pai, cansado de ser acordado no meio da noite, pegar a estrada para ajudar a alcançar os “fujões”, resolveu ir para perto do trabalho e nos levou para morar no lugar mais encantador que uma criança poderia viver!
Da Fundação até minha casa havia um caminho de terra estreito acompanhado por mangueiras em ambos os lados, e não era qualquer mangueira não, era manga “ubá” mesmo! Aquela amarelinha por dentro e pretinha por fora, a mais gostosa de todas, também conhecida como “carlotinha”! Ainda sinto o cheiro da manga madura, é o cheiro do meu trajeto até o ponto de ônibus da escola, bendito trajeto... com cheiro de manga e sombra até o final! Na primavera, as mangueiras se enchiam de cigarras. Elas que me ensinaram o quanto pode ser chic “morrer de cantar”!
O pequeno lago à esquerda da casa, hoje coberto por taboas (aquelas plantas aquáticas em que a flor parece um microfone), era o palco dos marrecos d'água, não para bailarem com a elegância de um cisne, mas para vadiarem a tarde toda, causando inveja nas galinhas d'Angola apáticas e ciscadoras de terra seca! Da janela do meu quarto eu podia jogar uma pedra no lago, era muito próximo. A nascente era ali mesmo, no silêncio da noite dava pra escutar as borbulhas da água brotando da lama. O que mais uma criança “pisciana” poderia querer? Pois ainda havia um rio cortando o meu quintal! O rio Turvo , aquele que deu origem ao primeiro nome de Viçosa, quando esta se chamava Povoado de Santa Rita do Turvo. Caudaloso e lamacento, continuava a mesma coisa desde a época em que pescava lambari s com meu pai, talvez um pouquinho mais magro, mas nem de perto nas proporções em que o São Francisco vem “emagrecendo”!
Cruzei o mato do quintal e me agachei às suas margens, como um pescador de ilusões cuja as varas são as lembranças e os anseios. Naquele mesmo lugar, quando eu tinha cinco anos, conheci o “quinze”, um menino caolho que de vez em quando pescava aos fundos do nosso quintal.
_ Quem é você?
_ Sou aluno da Fundação.
_ E por que você pesca aqui? O rio também passa por lá!
_ Seu pai foi quem deixou, sou aluno dele.
_ Ah! E qual é seu nome?
_ Quinze.
_ Quinze? Isso é número, não é nome!
_ Eu sei, mas aqui todo mundo me chama de “quinze”. Cada um recebe um número quando chega, fica mais fácil.
Nos tornamos amigos, e anos depois fui descobrir que ele “pescava” a pedido do meu pai, para me vigiar e não deixar que eu chegasse muito perto do rio! Havia um outro aluno que não saía da minha casa, ajudava minha mãe na cozinha, ou me empurrava no balanço. Esse era o “número 3”. Muito calmo, de voz mansa, segurava um garfo como ninguém. Foi meu primeiro amigo gay. Mandado de Quintino pelos seus pais para receber uma educação rigorosa na Funabem, voltou mais bicha do que chegou!
E continuou passando aquele velho filme da vida... assim como passava o tempo, assim como passava o rio.
Olhei a mangueira do quintal que era só minha, o balanço que meu avô fez pra mim não mais existia, porém o velho amarrou tão forte a corda de sisal que dava pra ver as marcas do “vai-e-vem” no tronco!
Minha última parada foi o estábulo. Ficava de frente a casa, do outro lado da estrada, era o lar de dois grandes amigos: Paraná e Paraíso.
Paraná era um “bitelo” de um boi, gordo e inteligente feito ele só! Puxava o seu carrinho sozinho todas as manhãs levando hortaliças para a sede da Escola. Bastava que alguém as colocasse na carrocinha, batesse de leve na sua traseira e desse a ordem:
_ Paraná! Paraná! Leva!
E ele levava mesmo! Depois regressava sozinho ao estábulo.
Já o Paraíso era um cavalo. Não era dos mais belos, mas tinha lá seus encantos, era manso de dar dó. Podia-se montar sem sela, sem nada! Ele é inesquecível pra mim porque foi um dos meus 3 despertadores matinais: o primeiro era o meu avô, que chegava as cinco da manhã “cacarejando” feito galo debaixo de minha janela; o segundo era a zoeira das maritacas, que também chegavam cedo para detonar as frutinhas da “árvore de papagaio”; e finalmente, o cavalo Paraíso, que batia com a cabeça na janela de madeira pra ganhar cafuné! Bichinho folgado esse, não?
E assim foi parte da minha vida, cercada por bichos tão “humanos” quanto gente e de gente “numerada” feito bicho. Cercada de água pura que brota da lama e de água “turva” que corre, de sapo que nasce pra cantar e de cigarra que morre de cantar!
Foi ali, na minha segunda morada, onde eu aprendi a ler na penumbra, que eu busco as origens do meu paradoxo.